Prezados amigos e amigas,

O presente Blog, tem a finalidade de ser mais um instrumento de valorização da família.
Por isso trará sempre artigos relacionados a esse tema, abordando os diversos aspectos que envolvem a formação de uma família sadia e segundo os preceitos cristãos, além de enfocar os diversos aspectos do relacionamento familiar.
Esperamos assim, que possa servir como um meio de reflexão, ajuda e fortalecimento àquelas famílias que encontram-se em situação difícil.

Que Deus nos ajude nessa empreitada.

Pedimos ainda que a Sagrada Família abençoe e proteja a todas as famílias do mundo inteiro. Amém !

José Vicente Ucha Campos
jvucampos@gmail.com

sábado, 22 de janeiro de 2011

FAMÍLIA ATUAL, UMA MUTAÇÃO ANTROPOLÓGICA ?

Em poucas décadas, sob o efeito de diversos fatores convergentes, tais como a revolução sexual, a difusão da cultura de massa e a influência dos meios de comunicação social, as possibilidades oferecidas pela manipulação genética, as mudanças na organização da produção, com o advento da informatização e a automação dos processos produtivos e com a prevalência no mercado do capital especulativo “volátil”, de alta rentabilidade, configurou-se um cenário cultural e social no qual floresce uma imagem de homem e de mulher radicalmente diferentes dos anteriores. Alguns autores falam de uma “mutação antropológica” (Scola, 1999, p.316), isto é, de uma visão alternativa e global do homem e de todos os aspectos mais profundos da sua existência.

A mudança que atinge a maneira de compreender o ser humano constitui um processo complexo, do qual são indicadas algumas etapas mais significativas. Começa a prevalecer um dualismo antropológico que separa como mundos distintos o corpo e o espírito. O corpo passa a ser considerado como um material bruto, sem significado pessoal intrínseco e dominado pelo determinismo das leis biológicas e psicológicas. O espírito, representando o mundo da liberdade, da busca da paz interior, da integração cósmica e da elevação mística, estaria justaposto ao corpo, seguindo suas próprias exigências. A mudança mais relevante se verifica no campo da sexualidade que, na nova perspectiva, pode ser vivida sem a abertura à procriação. Este fato retira da sexualidade a característica de ser premissa para constituir uma relação de responsabilidade recíproca, que dure no tempo, capaz de acolher e educar a eventual prole. O exercício da sexualidade perde a exigência de um vínculo estável, em vista de um projeto comum de vida, enquanto conserva o caráter de fonte de prazer. O aspecto lúdico, sempre presente na expressão da sexualidade, acaba por ser a única dimensão que define seu valor, eliminando qualquer responsabilidade da pessoa com o parceiro dos jogos sexuais.

Nesse quadro, o matrimônio e a família perdem significado. Diversas agências da ONU tornaram-se caixas de ressonância dessa mentalidade e, nas Conferências de Cairo e de Pequim, defenderam novos direitos, mais condizentes com a emergente imagem de homem e de mulher, de sexualidade e de maternidade. Os “novos direitos”, no entanto, que são defendidos como sinal de uma maior liberdade (ao aborto, à eutanásia, etc.), constituem na realidade a mais sutil submissão à lógica do mercado, que coloniza todos os espaços da vida, difundindo seus critérios contábeis, de cálculo, de conveniência, do intercâmbio de equivalentes, emergindo como critério fundamental para a tomada das decisões a avaliação de custos e de benefícios (PETRINI, 2000).

A divergência da antropologia, até então aceita, pode ser percebida pelo relatório de Monsenhor Renato Martino, observador do Vaticano junto à ONU: “O princípio de que a sexualidade é inerente à relação conjugal foi tratado nas Conferências do Cairo e de Pequim como uma inútil relíquia do passado. [...] Também a sacralidade da vida foi posta em ridículo e ofendida” (MARTINO, 1997, p.76).

A procriação também pode ser realizada sem o concurso da união sexual sendo, assim, assemelhada à produção de uma mercadoria. Com efeito, a fecundação pode ser obtida através de técnicas de laboratório, não sendo mais necessária a relação sexual. Com o desenvolvimento da clonagem, não será necessário nem mesmo o concurso de um elemento masculino e um feminino. A procriação pode acontecer fora do ambiente da intimidade sexual entre um homem e uma mulher, vivida como expressão do amor, assumindo todas as características de uma produção industrial.

A vida humana não mais é compreendida como relação com o Infinito e por isso inviolável, inegociável. A vida e a morte passam a ser negociadas politicamente e submetidas à aprovação da maioria ou ao arbítrio do indivíduo. A vida humana que começa e a que termina, dentro dessa visão, podem ser suprimidas, sempre que os interesses em jogo assim o preferirem. O embrião não passa de aglomerado de células, podendo ser submetido a qualquer tipo de manipulação. O corpo reduz-se a instrumento de trabalho e de lazer, perdendo outras dimensões.

Diante desse novo cenário desenhado pela cultura pós-moderna, o Papa manifestou muitas vezes sua preocupação, convidando cristãos e “homens de boa vontade” a retomar o desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família, para participar do debate em curso, tendo como ponto de partida a visão cristã do ser humano na sua versão mais original. No “Evangelium Vitae” n. 28, ele afirma:

Encontramo-nos diante de uma batalha gigantesca e dramática entre [...] a morte e a vida, entre a cultura da morte e a cultura da vida. Encontramo-nos não apenas “diante”, mas necessariamente no meio desse conflito: todos estamos envolvidos e tomamos parte nele, com ineludível responsabilidade para decidir incondicionalmente em favor da vida (JOÃO PAULO II, 1995, p.57).

O desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família

O Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família vem trabalhando, há mais de vinte anos, para compreender essas mudanças e para elaborar uma antropologia adequada às exigências humanas originárias, tendo em vista o diálogo com quantos estão atentos à evolução sociocultural. De modo sucinto, são indicados, a seguir, alguns dos temas mais significativos que vão construindo essa nova perspectiva de reflexão (A BÍBLIA de Jerusalém, 1981, p.34).

O objetivo principal é elucidar o desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família, tomando como ponto de partida a narrativa da criação, do livro do Gênesis. Esse relato, de um lado, valoriza a relação do ser humano com o Criador, do qual é imagem e semelhança e, de outro, valoriza a diferença sexual como originária, pois “homem e mulher o criou”(Gn 1, 27). Estão assim articuladas e integradas a dimensão espiritual e a corporal do ser humano, que se afirma como uma união indissolúvel de corpo e de alma (corpore et anima unus). A inquietação relacionada ao desejo de infinito e a busca da felicidade que caracterizam o ser humano de todas as épocas, como a poesia e a arte documentam amplamente, podem ser levadas a sério, abrindo o espaço para a transcendência.

Nesse quadro de referência ao corpo (e à diferença sexual que o caracteriza) é atribuído um significado simbólico, com valor de sinal e expressão da pessoa. Esta é reconhecida como um ser consciente, racional e livre, que traz em si uma vocação originária ao amor, fundamento da dimensão social do ser humano. Com efeito, só na companhia de seus semelhantes ela encontra as condições necessárias para o seu desenvolvimento e para a sua realização, a começar pelo matrimônio e pela família. A pessoa, assim compreendida, é sujeito de uma dignidade absoluta, que não depende de nenhuma qualificação e possui direitos inalienáveis e deveres morais que a colocam como razão de ser de todas as instituições sociais, políticas e econômicas. É apenas o caso de lembrar que é impossível construir a realidade social como ordem, na liberdade e na justiça, quando esses direitos inalienáveis são conduzidos no horizonte do mercado, negociados de acordo com interesses de grupos.

Os estudos teológicos do Instituto estabelecem um nexo entre a revelação divina e a experiência humana que contribui para a renovação de um horizonte metafísico de tipo existencial. Abre-se, dessa maneira, a possibilidade de percorrer um itinerário, antes impraticável, para falar da pessoa, da sua liberdade, da comunhão interpessoal, em analogia com as relações intratrinitárias e do amor esponsal como dom de si no corpo, à imitação de Jesus Cristo que se doou no corpo para a vida do ser humano.

a) Homem e mulher - A diferença sexual introduz o ser humano na consciência de uma deficiência e de uma solidão originárias, na evidência de uma fragilidade radical que poderia desembocar na extinção da própria espécie. Estes limites o impelem à busca e ao conhecimento do outro de si, do diferente, para o qual sente-se atraído e junto do qual pode enfrentar positivamente seus limites. A consciência de si, da própria identidade, nasce do encontro com o outro, que se realiza através do corpo, sexualmente diferenciado. A autoconsciência nasce da reflexão sobre a experiência que pessoalmente cada ser humano faz de si e dos relacionamentos que estabelece com toda a realidade e com o outro sexo. Deficiência, solidão e fragilidade são insuperáveis sem o concurso do outro, que começa a ser percebido como possibilidade de resposta, de solução ao próprio drama. Nesta perspectiva, a sexualidade emerge como condição, como fator fundamental da própria identidade de ser humano.

O ser humano não pode existir sozinho, mas somente como unidade de dois e, portanto, em relação com uma outra pessoa. A diferença homem-mulher é compreendida, então, como a expressão de uma originária unidade dual que implica e valoriza simultaneamente a identidade e a diferença. A mesma dignidade e os mesmos direitos qualificam a identidade do ser humano que aparece na história sempre e somente como homem e mulher, mesmo quando essas categorias parecem culturalmente confusas.

Para compreender o significado da sexualidade humana é necessário, antes de mais nada, deixar falar o dado, ao mesmo tempo fenomenológico e ontológico, que nenhum homem (ou nenhuma mulher) pode ser por si só todo o ser humano: ele tem sempre diante de si a outra maneira de ser, a ele inacessível. Uma alteridade que é diferença distingue o homem a causa de sua natureza sexuada. Também sob este aspecto, manifesta-se inevitavelmente sua contingência (SCOLA 2002, p.32).

A diferença sexual é originária, constitutiva do ser humano, essencial à sobrevivência da espécie, inscrita em cada cromossomo. Ela foi elaborada culturalmente ao longo das gerações, quase sempre em função do jogo de poder entre os sexos. As imagens e os modelos de comportamento masculino e feminino, fruto de circunstâncias históricas determinadas, podem ser colocados em discussão, como de fato está acontecendo, em busca de uma maior correspondência com as exigências de igualdade e de participação. As relações entre os sexos constituem, neste sentido, um interessante entrelaçamento de natureza e cultura.

b) Antropologia dramática - Esta compreensão do ser humano na sua corporeidade sexuada situa-se no horizonte da antropologia dramática. Afirma Von Balthassar, (1992, p.317): “[...] não existe outra antropologia a não ser aquela dramática”. O drama nasce do fato de que o ser humano se move na cena do mundo sobre a qual deve representar a sua parte. Todavia ele compreende que deriva de um primeiro ato não escrito por ele e do qual não participou e se move em direção ao último ato, do qual não conhece o script, não sabendo como terminará. Quando reflete sobre si mesmo, o sujeito individual encontra-se já em ação na cena do grande teatro do mundo. Ele não escolheu começar a existir, no entanto, encontra-se na situação de ter que escolher para edificar uma existência que busca inevitavelmente a sua realização. Como a linha do horizonte, a realização da própria humanidade parece afastar-se quanto mais procura aproximar-se dela (SCOLA, MARENGO e LÓPES, 2000, p.59-60). Move-se na cena do mundo, devendo escolher entre uma ampla gama de possibilidades. “Talvez não há outro ser vivente a tal ponto dilacerado entre alternativas” (STEINBECK apud BALTHASSAR, 1992, p.320). “[...] não pode sair do curso da ação dramática na qual se encontra desde o nascimento, não pode sair para finalmente ponderar sobre o que jogar. Ele já está no jogo sem que alguém jamais tenha perguntado a ele se quer jogar; já recita de fato uma parte, mas qual?” (BALTHASSAR, 1992, p.323).

A unidade dual de homem-mulher, alma-corpo, indivíduo-comunidade, está na origem do drama humano, com efeito, subtrai a pessoa ao determinismo biológico e chama em causa a sua liberdade como último ponto de definição da autoconsciência. A filosofia e a literatura documentam este drama, expresso com diversidade de acentos ao longo dos séculos. Na cultura pós-moderna, no entanto, assume especial importância o esforço para negar o drama, procurando eliminar as perguntas que o alimentam. (BALTHASSAR, 1992, p.335-370).

c) O Mistério nupcial - Mistério nupcial é um dos conceitos mais importantes elaborado pelos teólogos da sede central do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família. Retomando uma antiqüissima tradição, já do Antigo Testamento, o conceito indica não somente a relação nupcial entre um homem e uma mulher, mas, por analogia, a Aliança entre Deus e o povo eleito. Por mistério nupcial, entende-se:

[...] de um lado a unidade orgânica de diferença sexual, amor (relação objetiva com o outro) e fecundidade, de outro, refere-se objetivamente, em virtude do princípio da analogia, às diversas formas do amor, que caracterizam quer o homem-mulher com todos os seus derivados (paternidade, maternidade, fraternidade, sororidade, etc.), quer a relação de Deus com o homem no sacramento, na Igreja, em Jesus Cristo, para chegar até a Trindade mesma (SCOLA, 1998/2000).

Deixando a outros a tarefa de desenvolver os aspectos especificamente teológicos, pode-se compreender o coração da nupcialidade, como a unidade de amor, sexualidade e procriação. Aqui está a originalidade do conceito, que apreende sinteticamente aspectos antropológicos fundamentais, resgatando a unidade que, desde os primórdios da história até poucas décadas atrás, constituiu o eixo da relação homem-mulher, ao redor do qual organizaram-se o matrimônio e a família e, como conseqüência, relações de cooperação e de solidariedade entre os sexos e entre as gerações. Na diversidade das formas que estas realidades assumiram e no meio de contradições que se verificaram, a nupcialidade sempre permaneceu como o núcleo central ao qual se deve atribuir a origem de dinâmicas sociais que desenharam as diversas civilizações.

Na sua acepção mais simples, nupcialidade indica uma relação entre um homem e uma mulher caracterizada por uma certa qualidade. Refere-se à elaboração de um projeto de vida comum que contém, em seu horizonte, a possibilidade de procriar filhos, de acolhê-los e educá-los. A simpatia e a atração entre um homem e uma mulher, que encontram na relação sexual a expressão mais plena, se orientam para a partilha estável da globalidade da existência, a ponto de constituir um casal socialmente reconhecido, caracterizado pela comunhão de habitação, de tarefas, de recursos, em vista da edificação de uma realidade comum, que encontra no matrimônio e na família a sua plena realização. Viver a paternidade e a maternidade no horizonte da nupcialidade, aceitando o empenho de educar a prole, produz mudanças relevantes não apenas na identidade das pessoas envolvidas e nas responsabilidades assumidas, com alterações significativas na organização quotidiana da existência, mas também na sociedade. A rede de relações familiares assim constituída cria espaços de gratuidade e de solidariedade entre os sexos e entre as gerações. E no tecido fino destas relações são transmitidos e consolidados valores, critérios de juízo, crenças, ideais, atitudes, que tornam a vida em sociedade mais ou menos civilizada.

O conceito de nupcialidade indica não apenas um certo tipo de relação homem-mulher, caracterizado pelo envolvimento e pelo dom recíproco de si, pela atenção ao destino do outro mais que ao próprio interesse. Indica também uma postura diante de toda a realidade, uma atitude humana carregada de afeição, atenta para aceitar e valorizar a alteridade, a diferença. Nasce, assim, um modo de relacionar-se com as pessoas, com a natureza e com o mundo dos objetos, compreendendo cada realidade no horizonte de totalidade da qual recebe significado. A nupcialidade sugere um olhar positivo sobre a realidade, capaz de reconhecer a finalidade do objeto, por exemplo, de um rio, de um bosque, de um animal, para além do interesse imediato que mede a sua utilidade. São Francisco de Assis, no seu Cântico das Criaturas, dirige um olhar nupcial sobre todas as criaturas, até mesmo sobre a realidade da morte, desejoso de admirar, acolher, respeitar. No pólo oposto à nupcialidade, situa-se a relação ocasional entre o homem e a mulher, no exercício de uma sexualidade que reduz ao mínimo os vínculos inerentes ao relacionamento. A cultura atual valoriza modelos de relacionamentos caracterizados pela parcialidade, que se limitam a aspectos particulares e envolvem interesses determinados, para um tempo limitado, em vista da maior utilidade.

Na cultura contemporânea, não será um conjunto de circunstâncias biológicas, técnicas e culturais que poderão induzir as pessoas a viver a sexualidade no horizonte do amor nupcial, como pode ter acontecido no passado. A nupcialidade, entendida como união de amor, sexualidade e procriação, poderá ser vivida somente como conseqüência de uma livre decisão, que nasce da compreensão da sua importância para a própria realização.

Por Dom João Carlos Petrini
Bispo Auxiliar de Salvador
Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família

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